quinta-feira, 28 de maio de 2015

O filme do ano (de 2002)

Reproduzi esta matéria, publicada em 2002, quando eu era repórter da Tribuna da Bahia. É sobre o lançamento de um dos melhores filmes do cinema brasileiro, Cidade de Deus

Na favela carioca Cidade de Deus, cerca de 10 homens e adolescentes fortemente armados cercam um grupo de crianças que conversam sentadas. Os guris se assustam e tentam fugir. A maioria consegue. Mas dois deles, de aproximadamente 9 e 11 anos, são agarrados e encostados em uma parede. Os dois tomam uma dura do chefe do grupo e quando pensam que serão liberados, são avisados que têm de fazer uma escolha: "Vocês preferem tomar um tiro em uma mão ou em um pé?", pergunta o homem, com expressão demoníaca. O garoto menor começa a chorar e a pedir desesperadamente por clemência. Mas o homem insiste em uma resposta. Quando finalmente ambos escolhem as mãos, ele atira nos pés.

Ainda chorando muito, agora de dor, os garotos assistem ao chefe ordenar um adolescente, de aproximadamente 13 anos, a escolher um dos dois para cometer seu primeiro crime. O adolescente pega uma pistola e aponta durante um bom tempo para a cabeça do garoto menor. A criança, em prantos, grita pela mãe ao ver sua morte se aproximar brutalmente. O martírio só é aliviado quando o rapaz desvia a mira da arma para a cabeça de seu amiguinho e o executa. Essa foi apenas uma advertência do poderoso traficante de drogas Zé Pequeno a uma gangue de crianças delinquentes, que ao cometer saques e furtos, estariam atraindo a polícia para o local.
O filme Cidade de Deus, em cartaz nos cinemas de todo Brasil desde sexta, vai nas raízes de um "c âncer" que leva terror às classes média e alta e dizima comunidades pobres em todo o Brasil. Mostra a realidade nua e crua de uma favela, como nenhum outro longa, curta ou reportagem jamais havia feito. A película, dirigida por Fernando Meirelles, traz as origens do crime organizado carioca e a maneira como ele se encorpou. A história de alguns personagens do conjunto habitacional, nascido no final dos anos 60 e transformado numa das maiores favelas do Brasil ao longo dos anos, é narrada pelo personagem Buscapé, vivido pelo ator Alexandre Rodrigues.

O filme é pesado, tem cenas chocantes, trechos engraçados e histórias comoventes, baseados em fatos reais do livro homônimo de Paulo Lins, lançado em 1997. A adaptação é de Bráulio Mantovani e a co-direção de Katia Lund. Em Cidade de Deus a violência passa longe de ser banalizada como nas produções de guerra e policial americanas ou em outros filmes do cinema nacional. "Nada no filme é gratuito, exagerado ou mera exploração. É arrebatador ao traçar um retrato fiel de uma favela do Rio ao longo de três décadas", a analise é de Kirk Honeycut, da revista Hollywood Reporter.
Buscapé é um garoto que resiste a todo tempo às seduções do crime em busca do sonho de ser fotógrafo. Ele conta as histórias em uma narrativa interessante, na qual é utilizada idas e vindas no tempo e fortes jogos de imagens. O enredo, apesar de falar de dezenas de outros personagens, gira em torno do próprio Buscapé, de Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora) e de Mané Galinha (o ator e cantor Seu Jorge).

A trajetória dos personagens se passa em três fases. A primeira mostra o nascimento do conjunto habitacional, no final dos anos 60, quando Buscapé tinha 11 anos. Seu irmão Marreco (Renato de Souza), junto com Alicate (Jefechander Suplino) e Cabeleira ((Jonathan Haagensen), formavam o Trio Ternura, famoso por assaltar caminhões de gás. O garoto Dadinho trazia a bandidagem no sangue e fazia de tudo para fazer parte da quadrilha.
Na segunda fase, nos anos 70, o Trio Ternura já estava fora de circulação. Foi nessa época que o tráfico de drogas começou a ganhar força. Dadinho já era um bandido respeitado e temido na Cidade de Deus. É nessa fase que aparece Mané Galinha. Ex-atirador do Exército, ele é um honesto cobrador de ônibus que almeja sorte melhor na vida e sair da favela.

Na terceira fase, no começo dos anos 80, Dadinho vira Zé Pequeno, um sanguinário e ambicioso chefe de tráfico que não tira da cabeça a idéia de tomar a boca do rival Sandro Cenoura (Matheus Nachtergaele) e dominar todo o "movimento" na favela. Todo seu ímpeto é controlado pelo sócio, o "malandro sangue bom" Bené (Phillipe Haagensen).
A fase é marcada também pela sangrenta guerra de quadrilhas, sobretudo com a entrada de Mané Galinha na gangue de Cenoura e pela morte de Bené. Mané Galinha só entra no crime movido pelo desejo de vingança contra Zé Pequeno. Durante todo esse período, Buscapé concilia seu bom caráter e o seu sonho profissional com uma convivência respeitosa no meio marginal. Registrar todo aquele inferno é uma das poucas maneiras de se tornar fotógrafo do jornal, no qual trabalha de jornaleiro.
Cidade de Deus, considerado a grande descoberta do Festival de Cannes desse ano, foi uma das produções mais caras do cinema nacional. Seu orçamento foi em torno de U$ 8 milhões. Para realizar a produção o paulistano Meirelles abandonou uma confortável carreira de publicitário. Ele bisbilhotou favelas cariocas em busca de descoberta e formação de atores para fazer pesquisas.

O elenco, formado por 200 atores anônimos, foi escolhido em diversos exames entre cerca de 2 mil jovens. Matheus Nachtergaele é o único ator consagrado que participa do filme. O leitor deve estar se perguntando se a quadrilha de crianças delinquentes castigada por Zé Pequeno aprende a lição? Assista ao filme que você terá uma surpresa.

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